segunda-feira, 7 de março de 2016

Limpeza de salão


(...) Ia de carro, como eu gosto muito, excepto quando é no meio de muito trânsito. À minha frente, ia assim um aos ssss. Eu não ia a perceber nada do que ele ia a fazer, nomeadamente em que faixa é que ele tencionava ficar, uma vez que ora circulava naquela que aparentemente era a sua, ora circulava naquela que, definitivamente, era a minha. Quando assim é, eu fujo, muito depressa, antes de levar com a viatura em cima da minha, não me venham depois dizer que sou eu a culpada. Sim, que eu tenho culpa de muita coisa, mas não tenho culpa de irem aos ssss e atirarem com o carro para cima do meu. Mas, mesmo assim, eu fujo, muito depressa. Quando ia a fugir, olhei lá para dentro. A ver se percebia que demónios se estava a passar. Eu, às vezes, gosto de olhar nos olhos das pessoas. Para ver se vejo os demónios. E vi. Era um demónio que tomava conta do dedo de um homem. E lhe deixava os olhos vidrados, fitando o infinito, e o carro governado pelo piloto automático. E o dedo andava à roda, à roda, à roda, dentro da narina, que, a calcular pelo empenho, já deveria estar mais que limpa. Concluí que há quem leve a cabo esta prática não apenas por necessidade, mas também por vício. Eu acho que é compreensível. Aliás, acho que as pessoas que limpam o salão muito bem limpinho são incompreendidas. Tivésseis vós rinite alérgica e logo víeis se não compreendíeis. Eu compreendi a pobre criatura e apiedei-me dela, mas ainda assim fugi, entendendo que, talvez, quem sabe, fosse possível realizar aquela tarefa importante e imperiosa, talvez, em outro local, outra altura, outro momento, mas então uma voz dentro de mim lembra-me do mal estar causado por seres estranhos, perfeitamente identificados, deambulando dentro das narinas de uma pessoa, como se mil pézinhos de fizessem sentir, saltitando, caminhando, dançaricando cá dentro, até que uma pessoa cede à loucura de meter o dedo no nariz. E depois fica-se assim, vidrado. E liga-se o piloto automático do carro. Questiono-me se isso explica a sinistralidade nas estradas; não daquela que mata gente e provoca problemas de saúde física, essencialmente. Não. Refiro-me àquela sinistralidade que acontece quando o Zé Manel apita às outras pessoas porque elas deixaram o que estava à sua frente passar na saída do estacionamento para a estrada, mas depois avançaram e não deixaram o Zé Manel meter-se na estrada também. Refiro-me àquela sinistralidade que acontece quando se vai a contornar uma rotunda por dentro, porque até se quer virar à esquerda, e o Zé Manel vem por trás e apita, na esperança que contornemos a rotunda por fora, pela faixa mais externa, para que ele possa ir na faixa interior, só para poder ir um bocadinho mais depressa. Aquela sinistralidade que sucede quando se vai um pouco mais devagar porque não se conhece bem o caminho, e se vai a ver da saída e tal e vem o Zé Manel atrás e acende e apaga as luzes, porque acha que a gente ali à frente vai muito devagar para aquilo que a ele lhe apetece. Lá terá o Zé Manel de ultrapassar. Oh, que chatice tão grande. Ainda por cima é considerada uma das manobras mais ariscadas. As coisas que o Zé Manel é obrigado a fazer. Aquela sinistralidade que sucede quando o Zé Manel, num cruzamento, quer atravessar a faixa onde vem alguém que não vem à velocidade que ele quer, e ele avança, e esse alguém pára, por achar que o Zé Manel será algum louco, avançando para cima dos demais. Eis que então olhamos para o Zé Manel e para os seus olhos, em busca dos demónios. Será que é o demónio do dedo no nariz? Não sei, mas sei que do outro lado pode haver sempre o demónio do dedo levantado, o do dedo médio. O meu anda a modos que enferrujado, tanto me tento comportar como uma senhora, mas ainda se levanta quando é preciso transitar pelo meio dos javalis. PS: nada contra os animais, atenção... que os animais mesmo andam em duas pernas!

Texto originalmente publicado no blog "Riscado a Giz".

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