sábado, 27 de outubro de 2012

Bus


Eu juro que gostava de andar nos transportes públicos. Tenho dúvidas acerca do quão mais louvável será andar de transportes públicos, a ter a possibilidade de conduzir um carrinho económico como o meu, mas enfim, haveria que fazer as contas muito bem. De qualquer forma, é bem, é giro, ecológico e faz-se boa figura quando se diz que se anda de transportes públicos: e por bons motivos. A parte de ser mais ecológico é dos melhores argumentos, porque se formos pelo ser mais barato, tenho as minhas mais sérias dúvidas, pelo menos se não entrarmos em conta com o preço da viatura, inspecções e impostos, que isso, para mim, fica por conta da saúde das costas e do corpinho, que não precisa ser mais sovado do que já é, ou não se passe um dia inteiro em pé.

No entanto, não posso dizer que não tenha tentado. Eu até tentei não tirar a carta, nos tempos em que achava que conduzir era uma chachada. Não percebia o gosto que uma pessoa poderia ter de ir ali de braços dependurados, sem poder ler ou estar no computador e não prestar atenção a mais nada que não seja a paisagem a rolar pelas janelas (pelas periferias dos olhos, obviamente) e os semelhantes deslocando-se entre os limites do pára-brisas.

Há coisas incríveis no meu ser e esta é uma delas. Como é que é possível.

Mas lá tive de tirar a carta. Porque nunca sabia se ia chegar ao trabalho ou não. De facto, se queremos viver uma vida de diversão e aventura, há que andar de transportes públicos. Decidi tirar a carta num dia em que o autocarro que me levava resolveu fazer uma incursão pelos interstícios da Quinta do Conde e avariar numa selva de "vivendas" todas iguais umas às outras. Éramos três: um motorista e dois passageiros. O um passageiro que não era eu, sacou do telemóvel, pediu a alguém que o fosse buscar, e basou. O um que era motorista fartou-se depressa e foi almoçar. E a uma que era eu, ficou a olhar de boca aberta para aquele quadro surrealista durante cerca de 10 minutos e depois fez-se ao caminho. Foi parando pelos cafés e perguntando pela estrada nacional, ao que toda a gente respondia com um olhar de compaixão e com a invariável expressão "oh, mas está muito longe!". Faltei à escola - e não foi a primeira vez que faltei por não ter transporte; ou que tive de pagar táxi para conseguir chegar à escola - deixando as crianças sem o teste que deveriam ter feito nesse dia. Felizmente tive sorte: iniciei a minha jornada por volta das 9 da manhã e ainda consegui acabá-la a tempo de chegar a casa mais ou menos à hora em que costumava chegar habitualmente, depois de ter calcorreado quilómetros a pé. Só tinha os meus avós na Margem Sul. Que não tinham viatura. Não os queria desinquietar, até porque não me poderiam ajudar. Eram eles que tinham em casa os números dos taxistas que me poderiam ajudar, mas eu também não saberia dizer onde estava. Nem pagar o balúrdio que me pedissem para me ir buscar. Claro que não me vou aqui referir aos dias de greve. Não é por nada, até poderia justificar as faltas, mas é que eu, na altura, gostava mesmo de dar aulas e queria dá-las. A sério que queria. Na altura e ainda hoje; prefiro, honestamente, que sejam mais os dias em que eu consigo chegar ao trabalho, do que aqueles em que não consigo.

Nesse dia jurei: transportes, nunca mais. Não cumpri, mas quase. Até porque continuei a ir visitar os meus pais aos fins de semana de transportes, de comboios, obviamente, visto o meu grande problema ser com os autocarros.

Mas tempos houve em que eu não queria tirar a carta. E outros houve em que mesmo eu já a tendo, o carro já era velho e eu não estava para gastar uma pipa de massa todos os fins de semana, de cada vez que queria andar mais do que 20 km. Então, lá vinha o autocarro outra vez.

Portanto, eu tentei, juro que tentei. Até quebrei um juramento que fiz a mim própria.

E lá vinham os velhotes dos HUC e os estudantes da UC. Primeiro, a fila para comprar bilhetes. Há que estar atento, porque se não vem uma alma mais sorrateira e zupa, usurpa-nos o lugar na fila. Depois, não adianta pedir um lugar à janela à senhora que está no guichet a vender os bilhetes, porque à porta do autocarro a violência é muita e as almas mais pacíficas costumam ficar sempre com os lugares do corredor e passar o resto da viagem a levar com os malões que os estudantes levam de fim de semana. 

Os velhotes do hospital e os estudantes da universidade, mais os seus malões, são seres deveras perigosos, capazes de furar um olho a quem se lhes meter à frente, mesmo que à frente seja o lugar onde o outro pertence estar. Quanto aos estudantes, considero absolutamente preocupante a situação, porque, apesar de frequentarem a universidade, não conhecem o sistema numérico árabe, nem o romano, e não conseguem descriminar a semelhança entre o número que está no bilhete e o que está no assento. Os velhotes também não conseguem fazer esta discriminação, mas nesse caso é mais compreensível, porque no seu tempo não havia escolaridade obrigatória e isso já lá vai longe, a malta já não se lembra bem das explicações da professora. 

Escandalizados ficam aqueles a quem dizemos: "desculpe, mas está no meu lugar". E depois vêem sempre os totós que compram o bilhete nº7 e vão parar ao nº75, armados em "fixarolas" dizer: ah, pois, está fora do seu lugar mas não se preocupe que eu agora não vou começar aqui a gritar para você sair do seu lugar eheheheh - isto tudo dito com grande orgulho.

Ah, tuga, não é que isto seja coisa grave, mas por aqui se vê tanta coisa. Se fosse um holandês, ou um sueco, ou um alemão, ou um inglês, sentava-se no lugar que lhe pertencia e pronto. Mas o bom do tuga adoooora encontrar os devidos atalhos... e quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos. Mas esta seria uma longa discussão que, provavelmente, não nos levaria a lugar algum. 

Escrevo tudo isto com a imagem em mente da história que a minha avó gosta de contar, quando as trabalhadoras da sua fábrica voltavam para casa, depois de um dia de trabalho. Primeiro, uma bela e organizada fila. No entanto, depois de avistarem o autocarro, este vislumbre parecia accionar um qualquer mecanismo de transformação em animais selvagens, ou então simplesmente em crianças dos níveis mais básicos de ensino, e a fila desfazia-se, e as almas precipitavam-se num turbilhão de gente para dentro do autocarro, levando à frente tudo o que eventualmente se lhes interpusesse no caminho, qual manada de elefantes, mas num estádio ainda mais primário do que o dos próprios elefantes em fuga. Entenda-se por algo que eventualmente se lhes interpusesse no caminho, um pobre homem circulando na sua vida, na provável tentativa de, também ele, chegar a casa, mas ignorando, certamente, os perigos que por si esperavam, espreitando à esquina, ou, mais concretamente, espreitando à paragem. 

Se um dia der por si dentro de um autocarro para onde não pretendia entrar, sem perceber muito bem como foi lá parar, procure bem na sua memória e pense bem se não terá visto, segundos antes, um conjunto de mulheres numa fila para o autocarro. Lembre-se: sobretudo se for homem, tenha muito cuidado ao atravessar ajuntamentos de mulheres. Segundo se conta, o homem praguejava que as mulheres daquela fábrica seriam "mesmo doidas", isto nas suas próprias palavras, proferidas ao sair pela porta de trás do autocarro, num golpe de sorte e de compaixão por parte do grupo feminino enfurecido, que encontrou dentro de si um resquício de piedade e não obrigou o homem a sair apenas na paragem seguinte. 

A minha mãe também sempre lembra a técnica falhada do alfinete, que consistia em levar um alfinete para a fila do autocarro e picar o traseiro de quem se lhes interpusesse indevidamente, mas acabou, mais as suas parceiras, por concluir que as outras criaturas, as que se interpunham indevidamente, acabavam a acelerar a velocidade e entrar ainda mais depressa para o autocarro, pelo que a operação alfinete teve de ser abortada.

Caros amigos, como vedes, é por estes e outros motivos que eu, ainda que a contra vontade, fui brigada a abortar a operação transportes públicos, pelo menos no que concerne à parte do autocarro...











Mona Lisa, ou a gaja que está sempre a olhar para a gente


Andava eu a vadiar. As aulas acabavam às 11 e 15, e a reunião da tarde era só às 17 e 30, e noutro sítio. Posso até trabalhar nos entretantos, mas à hora de almoço, se não hei-de ir almoçar fora e passear-me pelas lojas, e há lá coisa que uma gaija goste mais de fazer (no meu caso, por acaso até há, tantas e tantas). É que, apesar de tudo, lá emagreci um bocadito e fazer belas toilettes continua a ser um dos meus musts, assim como o momento fútil ao qual me dou ao direito, por isso, nem que não se compre nada, ao menos tiram-se ideias e vêem-se coisas que depois ajudam a ter outras ideias. E sempre se desmói o almoço. E andei por lá, e andei. 

Até que passei em frente à Benetton. Nunca entro, mas daquela vez entrei, porque estava uma gorra na montra, ou melhor, várias, nas cabeças daquelas rapariguitas de plástico, sempre em pose e muito quietas, em pose e muito quietas. E se tinham cores giras. As gorras, que as miúdas eram todas mais brancas que a cal das paredes - deve ser dos nervos de estarem ali assim paradas a olhar para as gentes a passar.  Havia uma roxa. Eu já tenho uma roxa, mas aquela era mais clara. Deixa lá ver, pensei eu. E olhei para a gorra. Era uma gorra daquelas que as minhas mães não gostam. Mas debaixo da gorra, estava a  rapariguita. Estava com ar de má, a olhar-me de esguelha. E eu entrei na loja  e ela sempre a seguir-me com aquele olhar malévolo.

Entrei, comprometida, na loja. Não sei qual o problema da rapariga comigo. Eu não fiz nada, eu tencionava pagar pela boina que, ainda apor cima, não existia no interior da loja. Questiono-me se ela estaria enervada a pensar que eu poderia vir a roubar-lhe a boina, precisamente por não haver nenhuma lá dentro e restar apenas a da montra. Aquilo é tão quentinho e sabe tão bem na cabeça, que compreendo o stress da rapariga.

Mas fez-me lembrar um quadro da Mona Lisa que havia lá em casa quando eu era pequena. Quadro não; a minha mãe comprou a Mona Lisa uma vez na praça, levou-a para casa, meteu-lhe uma bela de uma fita-cola toda ao correr, et voilá, uma bela de uma moldura. Antes disso acho que houve uma moldura verdadeira, de madeira e tudo, mas desconjuntou-se e aquela fita-cola que fingia madeira ficava ali mesmo bem. Quem fosse a correr, pois, não daria por nada. O problema talvez fosse que não se ia a correr. Primeiro, porque a casa era pequena e se se corresse muito, estampava-se contra uma parede, no mínimo.  Depois, e principalmente, porque o olhar daquela mulher desmobiliza qualquer um da sua intenção, seja ela qual for.

Eu achava que ela tinha cara de gozona, mas questionava-me como conseguia ela manter aquela pose com um nome daqueles: "Mona Lisa". Se fosse lá na minha escola, toda a gente ia gozar com o nome dela. Pensei logo de imediato na sorte que tinham as criaturas que viviam dentro dos quadros, não precisavam conviver diariamente com as manifestações mais precoces da estupidez humana.

Experimentei colar-me à parede, mas se a visse, ainda que de esguelha, ela estava lá, sempre a olhar. Não adiantava. Parecia que estava viva. Mas mesmo com aquele ar de gozona, eu achava que devia ser boa rapariga. Até tinha um semblante delicado e um sorriso suave. Se calhar sentia-se embaraçada de tirar fotografias, por isso é que ficou com aquele ar.

Cresci com a Mona Lisa a olhar para mim. Foi interessante, pois habituou-me a fazer frente a eventuais complexos. Ou, por outro lado, talvez, me tenha traumatizado. Talvez seja ela a responsável pela minha inexplicável fobia em relação a olharem fixamente para mim...


sábado, 20 de outubro de 2012










As máquinas multibanco que gritam com as pessoas.




Não compreendo o que pretendem com esta intimidação. Não sei se querem que paremos de levantar dinheiro (é possível), se pretendem que o façamos em larga escala, e se toda esta estratégia intimidatória tem a ver com o facto de acharem que nós, tugas, temos em nós muito de subversivo e masoquista, e que pretendemos ser mal tratados.

A verdade é que as máquinas multibanco escondem pessoas lá dentro que gritam, gritam muito. Eu diria que eram gajas e que têm todas a mesma voz (devem ter um critério rigoroso de selecção das tipas que metem para dentro das máquinas), mas isto, nos dias que correm, uma pessoa já não sabe de nada acerca dessa distinção entre gajas e gajos e assim. Mas a verdade é que gritam de lá. E muito.

Está uma pessoa a arrumar o seu cartão tranquilamente na carteira (ou a tentar), manda a tipa de lá um grito "POR FAVOR RETIRE O SEU CARTÃO". É sempre bom quando uma pessoa está feliz na sua vida, pensando que está a agir de uma forma absolutamente discreta e curriqueira, e a senhora guincha palavras relacionadas com as nossas acções financeiras em altos berros.  Para quem não gosta de dar nas vistas não deve haver nada que provoque maior sensação de absorção (absorção gostaria eu que fosse uma capacidade do chão, nesses momentos). E pronto, lá se vai a privacidade, está a rua inteira a olhar, ou o centro comercial inteiro ou, pelo menos, é a sensação que eu tenho. Claro que isso não é o pior. O pior mesmo é que o susto, por vezes, leva as almas mais incautas a atirarem com o cartão, que tentam enfiar em vão tranquilamente na carteira. E podem-no atirar para  lugares tão perigosos como para dentro de uma sarjeta, para o vaso da planta que está num lugar absolutamente inacessível para lá do gradeamento de uma varanda de onde só se tem acesso por dentro de um Banco, para cima da mais alta planta do Centro Comercial, ou ainda para a passadeira rolante,  dentro de um carrinho de compras de um casal de senhores muito mal encarado. 

Mas pior do que "POR FAVOR RETIRE O SEU CARTÃO", é "POR FAVOR RETIRE O SEU DINHEIRO". Aí, imagino que a mais honesta das criaturas fique com vontade de me dar um encontrão, agarrar na massa e sair a fugir. Não é que eu levante muito dinheiro, normalmente levanto 20 euros no máximo, mas como as coisas estão, a malta já não se pode armar em esquisita. Normalmente o grito vem quando já guardámos o dinheiro e fechámos a carteira.

Também há uma terceira hipótese:  "POR FAVOR RETIRE O SEU TALÃO". Essa, podendo parecer que é a mais inocente das três hipóteses é, contudo, a mais perigosa. É que normalmente é gritada quando já vamos a meio da rua, tantas vezes carregados de compras, com coisas como ovos e pacotes de leite, capazes de provocar um efeito semelhante à passagem de um pequeno tufão, se por acaso forem projectadas para o ar...