domingo, 25 de dezembro de 2011









Eu e a árvore de Natal



Já há muitos anos que sou eu que a faço, porque a minha mãe diz que não tem paciência; ironia das ironias. Desenrola-me os colares que se enrolam nas bolsas de viagem, arranja-me todas as coisinhas minúsculas que se partem e estragam, e diz que não tem paciência para fazer a árvore. Tudo bem, eu faço; eu adoro fazer a árvore. Ponho-me a pendurar as coisas e, a certa altura, afasto-me para ver o resultado. Havendo alguma coisa que não agrada, tiro e volto a colocar. Leva HORAS a fazer, até que tudo fique equilibradinho - a árvore é grande. Tentar que a distribuição dos enfeites seja mais ou menos uniforme para não ficar tudo amontoado nuns sítios e outros sem nada, costuma ser uma das prioridades. 

Entretanto, no entanto, este ano, a árvore teve um problema de saúde. De coluna, mais propriamente. Manifestou-se ainda eu não havia começado a minha tarefa; a minha mãe, como sempre, solucionou a coisa, pelo menos provisoriamente, mas a árvore não esteve pelos ajustes e uma bola em falso foi motivo para muita tralha vir por ali a baixo. Não se entenda vir por ali a baixo como cair; só dependurar, deslizar, enfim. A verdade é que também não ficava no sítio que eu minuciosamente lhe havia predestinado - à tralha. Sim, que esta árvore tem muita tralha, tralha do tempo em que eu ainda não era gente. Às vezes a minha missão parecia até decorrer com alguma dignidade, mas logo que eu praticava a minha movimentação habitual, a de ir ver a obra de longe, constatava que havia uma árvore de Natal que se não parecia gozar com a minha cara, imitava muitissimo bem. Lá tinha eu de gritar pela minha mãe - foi ela quem fez o remendo na coluna da árvore; seria, portanto, ela quem melhor saberia exactamente qual o jeito a dar-lhe para a colocar na posição da qual ela nunca deveria ter saído. Claro que os enfeites cuidadosamente apoiados em cima deste ou daquele raminhos acabavam a deslizar eles também, tal como a própria árvore mais a sua coluna enferma de excesso de flexibilidade. Digamos que foi um processo profundamente deslizante, no sentido mais exigente em termos de paciência, do termo.

Aquela luta constante desinspirou-me. Este ano a árvore não ficou nenhuma maravilha, até porque quem olhasse para ela de perfil, questionava-se se estava grávida ou quê. Ou se estava a treinar retroflexões como as que se fazem nas aulas de ioga.

Como se não bastasse, a Mafalda, que estava proibida de entrar na sala, entrou na sala. Aliás, a Mafalda está sempre, ou quase sempre, proibida de entrar na sala, mas desta vez entrou. E às vezes entra, ninguém sabe muito bem como. É uma gata, é normal que ninguém saiba muito bem como é que eles passam de um sítio para outro. E como foi seu hábito este ano e, provavelmente, em anos anteriores, posicionou-se debaixo da árvore, com ar de prenda. Mas a Mafalda jamais se contentaria com isso, simplesmente. Não, de forma alguma. Ela teve de estraçalhar uma estrela que estava dependurada na parte debaixo da árvore; um pobre enfeite que se lhe cruzou no caminho a quem ela não perdoou a intromissão. É o tipo de delito que a Mafalda não costuma perdoar aos objectos.


Claro que compensou a família na noite da consoada. Como o circo da TV não agradasse (e na TV dá circo a toda a hora), para ali esteve fazendo os seus próprios números: a gatinha que entra e sai da caixa do forno que os avós receberam de presente, a gatinha que está dentro da caixa do forno que os avós receberam de presente e lança cá para fora as unholas a tentar agarrar as mãos de quem se atreve a tocar nas abas da caixa, a gatinha que anda à roda, à roda, à roda até ficar tonta, atrás de uma fita de presente, a da gatinha que tenta comer um bocado de esferovite com o focinho enfiado dentro de um saco, etc, etc, etc.
















Não consigo dormir com o barulho das suas pantufas.

Ela não disse que não conseguia dormir. Não. Ela disse-me que comprasse outros sapatos, ou outras pantufas, ou lá o que era. Eu disse-lhe que ela devia ter os cristais todos lá de casa a tilintar de cada vez que as minhas pantufas faziam vibrar violentamente os mosaicos do chão da minha casa e os candeeiros da casa da alma em questão. E ela diz-me para eu não ironizar com coisas sérias e eu digo "o que é que a senhora quer que eu diga" face a esta lógica insólita, acrescento eu agora. Não consegue dormir com o barulho das minhas pantufas. Será possível que eu tenha envergado nalgum dia algumas pantufas de salto agulha e pulado no chão da entrada sem me aperceber disso?










Mafalda during the night


Digamos que agora, ultimamente, até tem corrido bem. Entrámos numa espécie de acordo: ela acorda-me a meio da noite; eu, com dificuldade, lá me levanto no meio do breu, tento enfiar as pantufas e lá vou a cambalear. Dou-lhe de comer, mas ela fica na cozinha e eu fecho a porta: pode deitar-se nas cadeiras que são confortáveis (são estofadas) e também pode ir para a marquise observar os passaritos que despertam com o raiar do sol. No entanto, antes disso, vai fazer-me companhia até ao WC - é o mínimo que pode fazer. Claro que ela aproveita para pular para dentro da banheira e pedir para eu ligar o chuveiro. Não, não é para tomar banho, embora pareça. Ela quer mesmo beber água do chuveiro; um fiozinho de água a correr tem muito mais piada que uma taça de cheia de água, como a princesa pode encontrar na cozinha. No entanto, a altas horas da madrugada, não lhe vou estar a ligar fiozinhos de água. Não. Se quer comer, vem atrás de mim e fica comendo na cozinha enquanto eu fecho a porta atrás de mim e volto para tentar ver se o passeio nocturno não me deita o descanso todo a perder. Ela normalmente aceita o acordo; no entanto, nem sempre. Há dias em que não quer ficar na cozinha, e não entra lá, mesmo que eu lhe ponha comida na taça. Então, não tenho coragem de lhe fechar a porta. Fica à solta pela casa. É certo e sabido que, quando o sol começar a raiar, uma menina andará a esgatanhar as portas e a "miauzar", para que alguém lhe faça companhia. Entretanto, naqueles dias em que não me quero levantar, trava-se uma batalha. Em primeiro lugar, a Mafalda vai procurar o sítio que lhe permitirá fazer maior estardalhaço. Normalmente escolhe sacos. Se eu trouxe algum saco que não arrumei, pois a Mafalda servir-se-á dele sem dó nem piedade. E, claro, vai mandar com coisas que estão em cima de outras coisas, para o chão. Mas aí contém-se um pouco mais: já sabe que lhe pode cair algum objecto em cima, tal como almofadas ou coisas afins. É uma ditadurazinha - a chamada ditadura dos gatinhos...